Domingo, 23 de Outubro de 2005

FALANDO A FALAR (2)

AFR.jpg

Sobre este post, a Isabella, colocou este comentário:

“Conto-te uma história (com “h”, não estória): o pai de uma amiga, no final dos anos 50 tentou dar o salto para França, não havia emprego para ele no Sabugal. Foi agarrado na fronteira lusa e metido na choça. Dois dias depois, foi informado que, se aceitasse ir para Angola, era um homem livre. Ele foi... Sei de “n” histórias assim, tenho outra amiga, poeta com maiúscula, que traz família, aqui das Beiras, a quem o pão, finalmente, veio de terem aceite ir para os colonatos do caminho de ferro de Benguela. Volto a dizer, não é o meu caso, não me estou a defender (pai + mãe sou 'branca de 7ª' e não houve fome na origem da partida do trisavô). Sabes, o Mia Couto disse uma vez que, em Moçambique, "os brancos pobres eram mais racistas que os ricos". Infelizmente, concordo com ele: era um tempo em que havia mais ricos cultos que agora - parece às vezes... e culto, para mim, é acima de instruído.”

E eu fico-me a pensar, agradecido pelo contributo. Primeiro, porque lança luz de uma diferenciação necessária, contrariando a generalização dos termos absolutos e a perda que isso representa em termos de (des)aproximação histórica. Obviamente a categoria dos “colonos”, dizendo alguma coisa em termos de categorização dicotómica face aos africanos da terra ocupada, diz pouco em termos das suas origens, motivações, interface com a realidade colonial e grau de compromisso – o imposto e o desejado - com o poder colonial (o taxista de Luanda era uma “realidade social” muito diferente da figura Jorge Jardim). O fluxo migratório dos colonos era tão diversificado (nas motivações, nas origens, nos projectos) que não cabe em qualquer simplificação categórica - houve os criminosos que povoaram África como cumprimento de penas ou fugindo a elas, houve muitos parecidos com os que rumavam a França, Alemanha ou Canadá, houve os ofuscados pela riqueza fácil e rápida, foram muitos torcionários garantir a perpetuação das fracturas brutais da sociedade colonial, também existiram, até, os que foram para África para fugirem à prisão política e ao ostracismo social e político, etc, etc. Infelizmente, quer a propaganda anticolonial quer a frente da saudade de muitos luso-africanos, persistem, na maior parte das vezes, na absolutização redutora do “corpo dos colonos”, ocultando a diversidade das “árvores” através da apresentação da “floresta” e é asim que se alimentam os estereótipos. Precisamos de análises mais finas, mais parcelares, descer do todo para as partes, enriquecendo a análise e a compreensão. Para isso, deve falar quem sabe e viveu a realidade por dentro. Os contributos singelos e avulsos da Isabella ajudam. Mas ficam a saber a pouco. Venham mais.

Obviamente que, podendo e devendo ser mais exaustivos na compreensão e diferenciação dos sub-segmentos da “categoria dos colonos”, interessante historicamente para compreendermos o nosso papel em África e porque de lá saímos, como saímos e o preço que pagámos e fizemos pagar, a contradição social e política não morava, nunca morou, nessas infra-clivagens. Face aos africanos, os donos da terra mas condenados da terra, ao nível da macro-clivagem, todos os colonos, enquanto dominadores (em maior ou menor grau), estiveram sempre a mais, porque estiveram, até ao fim, como corpo social, a ocupar terra de “outros” e incapazes de criarem as condições mínimas de igualdade na condição, na dignidade, na oportunidade, na retribuição e na governação. A verdade é que, até ao fim do império colonial, manteve-se sempre a distinção entre “nós” e os “outros”. E os portugueses estavam, estiveram, na terra dos “outros”. O colonialismo trazia, dentro de si, a incapacidade de resolver esta contradição, quaisquer que fossem as panaceias aplicadas. Nomeadamente após o início das guerras de libertação, a única maneira de fugir ao impasse da ilusão e ao jogo ambíguo nos papéis desempenhados, era assumir a identidade nacional, escolhendo o campo dos movimentos independentistas (e um certo número, embora reduzido, conseguiu fazer o corte e escolher a trincheira africana, assumindo-se, esses sim, como cidadãos africanos e livrando-se da condição colonial). Pena o preço pago pelas ilusões que obscureceram a evidência desta realidade, pelo martírio da guerra prolongada, pela teimosia em tentar prolongar uma realidade insustentável, pelos danos e traumas causados num final dramático, para os portugueses e os africanos, que terminou numa enxurrada humana e no retrocesso no que, apesar de tudo, se foi contruíndo.

Finalmente, quanto à frase citada pela Isabella e atribuída ao Mia Couto. Se ele disse isso, admito que o tenha dito, disse aparentemente certo mas disse pouco e há um enorme poder de equívoco numa frase que pretende reproduzir uma realidade, enganando-a. A rejeição que se exprime com a sofisticação no lugar da boçalidade, pode ser menos brutal mas é, normalmente, muito mais profunda. E, penso, se vamos pela hierarquização do grau de racismo, podemos fazê-lo mas a cultura será a última coisa a ser chamada à conversa.









publicado por João Tunes às 01:04
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De Carlos a 24 de Outubro de 2005 às 14:27
Não acredito que algum dia venha a dizer "maldita passagem por África". Idem se tivesse vivido dez anos em Espanha, e houve Franco. Igual para se tivesse sido no Brasil, e houve por lá o que se sabe. Eu vivi em Moçambique e houve por lá o que me lembro. Aqui trata-se da 'minha' história e entenderás que a leitura da visão académica não tráz as mesmas emoções. E emoções são coisas profundas, coisas que vão fundo. Nunca são visões desapaixonadas. Com todo o respeito por posições diferentes, até sou mais que curioso, sou interessado por elas. Porque é 'tema' que me é tão caro que mexe com emoções. Desta fogueira que se acende eu só consigo ler este grande sinal de fumo: "não acredito que algum dia venha a dizer 'maldita passagem por África"
Um abraço a todos.


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