A frequência com que crianças portuguesas são maltratadas pelos pais, é qualquer coisa que envergonha uma pertença da mesma pátria. Os nossos propagandeados brandos costumes são uma representação pública. Portas dentro, chave a trancar a porta, no domínio do lar (entendido como espaço de poder, muitas vezes levado ao absurdo conceito do absoluto), a barbaridade deste povo ainda bárbaro vem à tona, descarregando na suposta impunidade do espaço privado. As agressões entre cônjuges, o destempero no ambiente caseiro, a violência sobre as crianças, são nódoas demasiado entranhadas e repetidas. Muitos portugueses, demasiados portugueses, são servis e beijoqueiros na praça pública mas bárbaros insanos em suas casas.
Julgo que transportamos duas gangas culturais uma, a de continuarmos como bárbaros (o passado negreiro está-nos ainda agarrado á pele); outra, a de uma conceptualização clerical-cristã (deus-pátria-família) em que transformámos a família em dogma e em estrutura de poder privativo e liberto dos direitos e deveres públicos e republicanos.
Entre marido e mulher, não metas a colher, Nos meus filhos, mando eu, Onde canta galo, não canta galinha, são alguns dos aforismos que definem formas demasiado persistentes de conceito sobre o poder familiar. Dando-lhe um estatuto privado de domínio e de leis, tentando imunizá-lo ao julgamento público e às regras dos direitos humanos (reservados, quando estão, para a esfera política).
Relativamente a esta nossa barbaridade portuguesa, as mulheres vão, aqui e ali, defendendo-se como podem e sabem. Poucas vezes, mas algumas vezes. Defendem-se ou abdicam de se defenderem. São, de qualquer forma, escolhas (na maioria dos casos, escolhas condicionadas) de pessoas adultas. Mas o principal atraso está perante as crianças. Elas são vistas como não autónomas, como seres pré-determináveis. Poucos olham a criança como um outro cidadão, um cidadão para quem temos deveres de sustentar e criar porque o metemos no mundo, mas que, como outra pessoa, não é nossa (a propriedade termina na saída do útero). Menos ainda abdicam de os quererem formatar à sua imagem e semelhança, como propriedade privada, no mínimo, espiritualmente. E a dependência de vida é a principal fonte da dependência do poder. Tudo fica a depender, então, do exercício do poder de posse.
Um bárbaro, quando se encontra numa esfera de poder absoluto, é um bárbaro absoluto. Ainda somos muitos, os bárbaros. Como não havíamos de o ser para com os que estão na escala do domínio maior, a tender para o absoluto as crianças? Assim, os dúplices, os agressivos, os tarados, os infantilizados, os dominadores, os castrados castradores, os de mente criminosa, os da libido desviada para parafilias, os beatos, os redentores, os proféticos, os possessos, usam e abusam das crianças por elas estarem incapacitadas de se defenderem ou sequer responderem. Enquanto, culturalmente, não se erradicar o conceito de posse (física, económica, espiritual) sobre as crianças, como construir um sistema público eficaz para as defender das barbaridades maiores?
. VIOLÊNCIA SOBRE AS CRIANÇ...
. REVISÃO